André Matiazzo

Desconfiando de tudo pt. I

Numa das últimas edições da Breaking Smart, Venkatesh Rao escreve a respeito da inteligência utilitária e da inteligência autotélica [1] – a que tem um fim em si mesma. Segundo ele, quem estuda a inteligência humana costuma defini-la como o primeiro tipo, como um instrumento para solucionar problemas. É fácil ver o porquê quando você olha para a eterna busca (da classe média que vive em grandes cidades, sempre bom lembrar) por mais praticidade, menos tempo desperdiçado e por esse carpe diem neurótico.

Para Rao, a inteligência humana não tem, por natureza, uma função prática. Assim como já não fazemos sexo só para reprodução e não comemos só para matar a fome, pensar é uma atividade que pode ser realizada por prazer.

Lembro de quando eu trabalhava com desenho de marcas e o resultado do que eu fazia vinha, muitas vezes, da conexão meio aleatória de elementos que flutuavam na minha cabeça. Olhava referências, testava junções e justaposições sem motivo e a coisa saía. "Sem querer". Eu tinha controle sobre o resultado, mas a sensação não era essa. É provável que a quantidade de referências fosse tamanha a ponto de, quando a ideia estalava e a solução vinha, parecia que tinha criado vida sozinha. Manifestações como essa mostram também que, apesar de não ser seu objetivo, o "pensar só por pensar" pode levar a resultados concretos.

Hoje, a falta de controle me deixa ansioso. O contexto mudou. Todo conhecimento novo, toda promessa de que aquilo que acabei de aprender vai liberar caminho para mais aprendizados já me fazer pensar em quanto terei que pelejar até que aquilo tudo vire um Conhecimento Aplicável. Como vou perder meu tempo não sabendo quais desses aprendizados possíveis é o mais útil? Essas perguntas são sintomas desse contexto utilitarista em que vivo. Aceitar o "aprender por aprender" ainda é ir numa contramão bem desconfortável.

Minha ansiedade atual se ocupa de pensar em como vamos viver com esse tanto de dados soltos por aí? Empresas gigantescas já têm acesso ao nosso histórico de navegação, às nossas conversas, aos nossos cliques e até aos vacilos de será-que-clico-nisso-ou-não sem que tenhamos voz para decidir o que será feito com todas essas informações. Uma neura plausível.

Ela começou de forma descompromissada, como quase tudo começa, enquanto eu assistia a um documentário sobre ética no design – o que a gente põe no mundo é responsabilidade nossa, não só de quem nos contratou etc. O filme em si não tem nada de extraordinário se você já passou pelo lampejo de "nossa, então se eu projetar uma câmara de gás e souber a finalidade dela, a culpa também é minha!", mas serviu para semear a sensação de que existia um novo mundo se abrindo ali.

No documentário, conheci a Sarah Gold, designer inglesa que fundou a IF, consultoria cujos projetos investigam o futuro de algumas tecnologias que logo estarão entrelaçadas às nossas vida a ponto de não repararmos mais nelas - como já acontece com smartphones e como nunca acontecerá com tablets sendo usados para anotar coisas quando é óbvio que à mão seria mais fácil. O trabalho deles é interessante porque envolve um tanto de design fiction [2] – testar hipóteses de futuro a partir de pesquisas e experimentos – e também porque é uma equipe de Designers Que Escrevem ❤. Um dos textos foi o responsável pela injeção de excitação e ansiedade que escancarou o que vou chamar de Fenda Fininha Até Então Fora de Foco [3], que, na sua potência, fez com que eu lesse o blog todo da IF em poucos dias.

We’ve adjusted our behaviour to incorporate the network. We carry phones with us all the time. We have them in their hands, or near them, all the time. People use them on the toilet. New social conventions form around them. And we often feel quite insecure if we don’t have them. The network has become a transitional object.

What are the implications of that network being part of more things?

Essa pergunta da Sarah Gold resume bem o que ela e sua equipe investigam: numa vida já tão conectada à rede – entenda por rede (network) essa quase-abstração que chamamos de internet –, como fica a nossa relação com os produtos (cada vez mais conectados) e com as empresas que os produzem? Pode parecer que pesquisas assim alimentam apenas futuros distantes e distópicos, mas não é preciso ir tão longe para ver o que já está acontecendo. Mesmo que você queira mantê-lo para sempre, seu smartphone, por exemplo, se tornará apenas um bloco de plástico quando os aplicativos não receberem mais atualizações. Imagine quando esse cenário incluir também sua geladeira ou seu carro. Na visão da IF, o que começa a valer como moeda de troca para as empresas é a confiança.

As more and more things become connected, that's an awful lot of things that we have different 'rules' or contracts with. It's going to be very hard, if not impossible, to know what you can trust and what you can't. And that's when you're the 'owner' of the product; what about the fridge in your friend’s house? What relationship do you have with that?

Já tomado pela Desconfiança De Tudo, segui o baile. Passei pelo Ethan Zuckerman, do MIT, e seu projeto com o Haddad (!) como parte de uma pesquisa para medir a desconfiança que temos de instituições; pelo bairro do Google no Canadá; pelo bot que questiona a Alexa e por um meio termo entre nossa exposição atual e o anonimato total. Nesse ponto da minha saga informacional, desconfiar de tudo parecia a melhor saída. Não como um niilista lúcido que finalmente encontrou A Verdade e aceita o peso de conviver com isso, mas como alguém que desiste mesmo, que aceita que já que só tem isso, vai assim mesmo.

O bom é que a sobriedade sempre vem depois de tomar um banho, lavar uma louça ou ler outras coisas (são boas saídas para essa e outras fossas). E ainda cria espaço para estender esse tema para uma outra edição.

  • Notas
  • [1] É um termo desnecessariamente acadêmico, mas o nome vai direto ao ponto uma vez que você entende como ele é construído (auto: próprio; telos: fim, finalidade). Tipo sapatênis: feio de ver, mas diz a que veio. (Senão teria que usar "inteligência com fim em si mesma", "inteligência auto-suficiente" etc e imagina o tamanho que as frases teriam.)
  • [2] Ouvi falar em design fiction pela primeira vez assistindo a uma palestra do Matt Jones. Não é tão memorável a ponto de eu me lembrar de tudo que tem nela (provavelmente porque ele é daquelas pessoas que exalam um tipo de inteligência meio intrincada que te fazem perceber, ao mesmo tempo que (a) Tem Algo Aí, (b) mas não entendi quase nada (c) e mesmo assim sei que é importante (um comentário no próprio vídeo diz melhor que eu: "Maybe he is a genius, but this talk is horrible. I didn't get what ge wanted to say and his rhetorical skills are aweful. Would have loved to learn from him."). Sempre vale a pena tentar, entretanto.)
  • [3] A FFAEFF é algo presente na vida de todo mundo, imagino. É aquele tema ou conhecimento sobre o qual você ouve falar mas que não é parte da sua vida (ainda). Ela vive na sua visão periférica. Quando entra em foco – por motivos diversos, como lidar com uma pessoa próxima morrendo; com o fato de que o machismo afeta mesmo a vida das pessoas –, é raro que a Fenda continue Fininha. Percebê-la é sinal de que ela foi ou está para ser escancarada logo. Depois disso, os efeitos variam de pessoa para pessoa, mas podem incluir: ansiedade e excitação (meu caso); arrependimento (por não poder se dar ao luxo de ignorar que Isso existe); fadiga mental; impotência; relembrar momentos da sua vida com outros olhos (e possível vergonha do seu eu dessa época).

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Se sua fossa é outra, temos no cardápio a espiral de melancolia na história do Ricardo da Augusta, a solidão dos homens gays, uma misturinha de ansiedade e depressão e as meninas que deveriam ser menos engraçadas.

Escrevo sobre tecnologia, sociedade e qualquer interesse que eu tenha no momento. Também mando uns links interessantes para você nunca mais ficar sem assunto na fila do banco.