Digerindo o fim dos tempos
Semanas atrás, apertei a mão do meu escritor preferido e disse que ele tinha sido muito importante para minha formação como leitor. Só fiz isso por conta dos “melhor se arrepender de ter feito do que não ter feito” que a gente vê em propaganda de carro. Porque, olha, deu vergonha da minha voz tremendo como se eu fosse chorar. Enquanto eu repassava a cena pensando em como poderia ter agido diferente, não parecia que tinha vivido aquilo. Parecia que alguém tinha me contado. Fiquei tão preocupado com a performance de fã que quer soar tranquilo – ao mesmo tempo que tenta ignorar o peso enorme daquela interação – que mal me lembro do que ele falou, de como me olhou ou da ordem das coisas.
Em que ponto será que o fanatismo deixa de usar a provável ressaca moral do dia seguinte como termômetro de ridículo? “Ele é só um escritor, sossega aí” não bastou para que eu não cumprimentasse o Daniel Galera e engasgasse enquanto falava com ele. “Essas pessoas só nasceram um pouco diferentes de você. Por que acha que elas são tão culpadas assim?” adiantaria para que o discurso de ódio fizesse menos sentido na cabeça daqueles que marchavam contra negros, judeus, gays e sei lá mais quem em Charlottesville?
(é assim que você faz um cavalinho de pau no meio do texto, usando experiência pessoal como ponte forçada para o tema principal)
No meu caso, tentei despir de exageros o sentimento por uma pessoa importante para mim. Desconfio que, no caso dos supremacistas brancos, a relação com o ódio seja diferente. Ao menos foi a impressão que tive dos entrevistados pelo minidocumentário da Vice, que parecem conviver mais com o discurso do que com o sentimento de ódio. Será que eles repetiriam tudo o que dizem pensar para uma mulher negra sentada na frente deles? Duvido. É mais fácil alguém “falar o que pensa” quando não precisa lidar com quem ouve te olhando no olho. Me chama a atenção, por exemplo, como o careca que fica meio-sorrindo o tempo todo nas filmagens não consegue nem manter contato visual com a entrevistadora – loira e branca – por muito tempo. O cabeludo que ela entrevista dentro da van tem a mesma dificuldade. Desviar o olhar e encarar o horizonte são mecanismos que a gente usa quando quer lembrar de alguma coisa. No caso deles, deve ser tanto um exercício de memória – relembrar o que a cartilha do ódio quer que eles reproduzam – quanto uma tentativa de fugir do olhar que eles devem encarar há tempos: o de quem te ouve e deixa claro que está pensando em como uma pessoa pode ser tão perdida assim na vida.
Passeata de supremacia branca é fichinha perto da nova moda que é atropelar pessoas em calçadas. Se eu não estou a fim de colocar minha segurança em risco, é só não aparecer perto da passeata. Mas se eu não quero morrer atropelado numa calçada, faço o que?
Tudo o que leio a respeito do Estado Islâmico – que é quem vem assumindo a autoria pela maioria dos atropelamentos recentes – ainda é muito fragmentado. Tem quem diga que eles estão perdendo força, mas quando você vê como ficou a cidade de Mossul depois de ter sido reconquistada, dá para falar que isso foi uma vitória? É como admitir que os cupins do mundo estão diminuindo só porque você dedetizou sua casa. Não sei se dá para medir o poder do Estado Islâmico pela quantidade de membros concentrada num mesmo lugar (o que parece ser a métrica mais usada para avaliar a extensão do poder deles). E nem sei se a gente tá pronto para lidar com essa insegurança de não saber quantos são ou onde estão seus membros. Talvez o terrorismo seja bem-sucedido ao criar esse tipo de sensação.
Quando o Mal começa a ganhar letra maiúscula e tudo parece estar indo para o buraco, é importante duvidar do que a gente pensa e do que acha que vê. Afinal, é só o mundo se apresentar minimamente dividido que a capacidade humana de enxergar conspiração em tudo ganha força.
Com o Estado Islâmico, os absurdos aparecem rápido. Os princípios pelos quais se guiam são baseados em crenças e profecias bem antigas, de um nível quase mitológico. Daí o exercício de olhar-de-novo parece ter um resultado óbvio: descartar todo o movimento como mais um bando de alienados que, apesar de sanguinolentos, logo logo vai ficar para a história.
Acontece que, depois de dezenas de entrevistas, com ele [Musa Cerantoni, defensor do EI] e com dezenas de seus companheiros em quatro continentes nestes dois últimos anos, acabei por vê-los como a superfície visível de uma causa que estava mexendo com as emoções e convicções de dezenas de milhões de outros, e que continuaria a inspirá-los ainda por décadas, mesmo se perdesse seu território central na Síria e Iraque. Aqueles homens e mulheres não eram autômatos psicopatas. Na verdade, muitos eram inteligentes, alguns até refinados e muito polidos. E o que eles estavam seguindo era mais do que um sistema de crença. Era um modo de pensar e viver, de compartilhar alegria e devoção; era uma cultura em si mesma.
A dissonância cognitiva ainda me perturba: são pessoas inteligentes que têm crenças extraordinariamente perversas. É tentador procurar resolver essa tensão duvidando da sinceridade deles – com certeza não desejam o genocídio, com certeza não me querem ver morto. Mas procurei por sinais de embuste e, se houver algum, eles são as vítimas, não os autores. Quando alguém diz algo maldoso demais para que acreditemos, nossa resposta não é duvidar de sua sinceridade, mas expandir nossa capacidade para imaginar o que podem desejar pessoas que, não fosse por isso, pareceriam íntegras. Essa é a resposta apropriada ao Estado Islâmico, concluí. Ouvir suas vozes e ver seu interminável currículo de apedrejamentos, imolações e balas na cabeça deixam-me com a mesma sensação daqueles pesadelos apavorantes que acabam nos acordando por serem vívidos demais. O terror torna-se tão intenso que nos arranca do sono. Entretanto, esse pesadelo só tem feito tornar-se mais real, sem um retorno ao estado de vigília, e ainda não concluiu sua expansão da nossa intimidade com o mal.
Se você olha para a richa besta entre direita e esquerda aqui no Brasil, fica óbvio que o ódio direcionado ao outro lado tem como finalidade a derrota. Eu venço, você perde. Mas quando a representação desse ódio – as mutilações, decapitações e estupros do EI – é para o seu bem, como você lida?
[Musa Cerantoni] Avisou-me que não demorariam a chegar os últimos dias profetizados por Maomé. A Terra sofreria secas – um terço do planeta ficaria sem chuva por um ano, e dois terços no ano seguinte. Viveríamos em uma era de milagres, tanto falsos como reais, de sofrimentos, massacres e tribulações inimagináveis, de guerra global travada com os mais variados instrumentos, do sabre à bomba termonuclear. Os que sobrevivessem, muçulmanos ou não, ansiariam pela morte.
Isso tudo ele relatou com a maior calma enquanto eu o ouvia e comia o meu cordeiro. A cada minuto o almoço perdia o gosto para mim. Diante de batalhas finais e apocalipse, quem é que vai ligar para comida? Quem é que vai ligar para qualquer coisa? As preocupações cotidianas que tinha carregado comigo àquele encontro (Meu gravador está funcionando? Tranquei mesmo o quarto no hotel?) perderam importância. Por um momento, senti a contracorrente da crença e consegui imaginar por que alguém poderia renunciar ao mundo sem graça em que eu vivo em troca do mundo encantado de Musa Cerantonio.
(...)
“Compreendo”, ele [Abu Aisha, que não defende abertamente o EI, mas propaga umas ideias muito próximas à dele] disse. “Você acha que isso é demais, e não é o único. O próprio Profeta disse que pessoas lhe fariam oposição. Isto é uma guerra – e não uma guerra que nós escolhemos. Não fazemos isso porque desejamos ferir vocês. Fazemos porque desejamos lhes oferecer alguma coisa.” Ele virou as palmas das mãos para cima, no gesto universal que representa dar. “Queremos ver todos os seres humanos no paraíso. Esta não é uma religião egoísta. Queremos ver vocês lá conosco.” (...)
Para Abu Aisha, minha obstinação seria cômica se não fosse trágica. Ele parecia pronto para me pegar pelas mãos e me sacudir para ver se eu despertava. Esses sinais – sem falar na perfeição do Alcorão e no exemplo do Profeta – não eram suficientes para me arrancar da hipnose da kufr [descrença]? “Estamos aqui para tornar o islã fácil para você!”
Esses são trechos de um texto publicado na piauí e fazem parte do livro A Guerra do Fim dos Tempos. O Estado Islâmico e o Mundo que Ele Quer, lançado pela Companhia das Letras.
Se te interessa confundir toda essa violência com amor, então vem comigo. A escrita dessa edição calhou com minha leitura do Simpatia pelo Demônio, do Bernardo Carvalho. A história trata da relação entre dois personagens que, entre outras coisas, se envolvem em abuso emocional, amor autodestrutivo, sexo gay, violência no sexo (um pouquinho só) e crise de meia-idade. Um livro que o MBL amaria odiar.
Tenho dois trechos aqui. O primeiro revela um pouco da relação entre os personagens. Se você tiver aversão a qualquer tipo de spoiler, pula. O segundo é só para mostrar um exemplo de graciosidade na escrita do Bernardo Carvalho.
Até aquele encontro no teatro, em Berlim, o Rato queria crer que o mundo fosse constituído de um amor em potencial, uma reserva de amor. Era sua parte de inocência. “Você pode rir, me chamar de ingênuo, mas está aí uma inocência que eu preferia não ter perdido, porque sem ela também não há vida”, ele respondeu à terapeuta. "Eu achava que bastava descobrir os canais certos para ter acesso a esse amor. E isso criava as condições de possibilidade para a esperança e a ilusão. A vida era isso, em potencial. A ilusão dava força para continuar vivendo, por pior que as coisas fossem. Eu sabia do mal, reconhecia onde estava o mal, combatia o mal profissionalmente, e o mal, por definição, me repelia. Enquanto eu o combatesse, ele estava fora de mim e eu estava imune a ele, fora da sua zona de influência. O mal era só uma ideia, uma abstração com a qual eu podia lidar à distância e entender como uma presença, uma necessidade e um fato, intelectual e profissionalmente. O mal existia, e não podia deixar de existir, mas eu não corria nenhum risco de me envolver com um assassino ou um criminoso de guerra, por exemplo, estávamos sempre em campos opostos. O mal só podia me atingir contra a minha vontade. Em Berlim, descobri que, ao assumir a imagem do meu desejo, havia um mal que eu não reconhecia nem podia combater. Esse mal depende de uma encenação, é claro. É um teatro. A sua fraqueza está nas palavras, porque o sujeito é incapaz de associá-las à verdade. Tudo o que ele diz é falso. Ele acaba se contradizendo por suas ações. Fala por clichês, por imitação, pelo que ouviu alguma vez outros dizerem. É uma língua fraca, porque não pode dizer a verdade. Não pode expressar seus sentimentos; está condenada a reproduzir como pastiche o que supõe ser o sentimento do outro, sua vítima. Imita a palavra do outro. É um eco vazio, como naquele e-mail em que ele fala de uma tristeza incomunicável. É tudo postiço. O único sentimento que ele pode manifestar de verdade é a raiva e o medo do animal acuado, quando a encenação é desmascarada, quando ele é contrariado. Mas, em geral, isso não ocorre. Ele sabe de quem se aproxima. Uma vez em contato com quem fala essa língua de espelho, a vítima se entrega, se reconhece no oposto, achando que é o mesmo, reconhece a vida na morte. A vítima pode a princípio até perceber alguma coisa estranha, que alguma coisa está fora do lugar e de sincronia, mas não pode (ou não quer) ver a impostura, porque de algum modo passa a reconhecer as próprias palavras nessa voz, e se confunde, achando que encontrou uma alma gêmea, um duplo, o amor. E depois, quando se dá conta do erro (se é que tem essa sorte), deixa de acreditar no poder que as palavras têm de dizer a verdade, qualquer verdade. A partir daí, ou você se cala ou se torna cínico. Não dá mais para acreditar na potência do amor nem na das palavras. A única coisa que ele sente de verdade mas não pode dizer é o amor que tem por si mesmo, porque dizer significaria desfazer toda a encenação.
Esse tipo de epifania é um dos meus xodós em ficção. Um outro é quando a escrita dá conta de expressar uma sensação já conhecida por quem lê, mas por outro viés. O segundo trecho faz isso. Vai da grandiosidade da experiência de comunhão humana à percepção de enclausuramento no próprio corpo – o pior tipo de solidão? – num único parágrafo. Maravilhoso.
E ele chorou ainda mais forte, ouvindo aquele oratório de inspiração cristã, destruído pelo entendimento de que estivesse condenado à inveja e à luxúria, e que inveja e luxúria nada mais eram do que solidariedade e compaixão cósmicas reduzidas a pecado pela miséria do lugar onde agora ele a encontrava. Chorava de vergonha. Não tinha coragem de olhar para os lados. O que ele perderá não fora só o [nome de personagem], mas uma ideia de mundo e uma ilusão. Sem o [nome do personagem], agora ele sabia, não havia mais ligação cósmica possível, ele estava condenado a pecar. Era esse afinal o efeito da moral cristã, o lugar a que ele fora reduzido. Não adiantava projetar, não havia sexto sentido, não havia comunhão espiritual com o resto dos homens. Ele estava confinado aos limites de seu corpo mortal, ao raio estreito de seus sentidos físicos, reduzido à própria vida, àquele percurso miserável de um indivíduo entre o nascimento e a morte.
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Para dar uma aliviada, é bom saber que, depois de abertos, os portões do inferno pelo menos têm umas coisinhas engraçadas, que os restaurantes agora se adequam às suas fotos no insta e que, finalmente, alguém se deu conta de que pagode é mais complexo que rock. Só não se alivia mesmo quem precisa viver com um salário mínimo em São Paulo.