André Matiazzo

Mais que escrever, jogar fora

Status: ainda escrevendo aquele texto que não ficou pronto para a outra edição. E nem vai ficar. Sempre tive dificuldade em falar o que eu penso em público. Ainda mais em forma de texto, que fica acessível depois de a gente nem lembrar que ele existe. Esse era desses textos de opinião que, por ser de opinião, me fez querer argumentar com base em ideias de terceiros – tudo para não dar o passo em falso terrível que é estar errado na internet.

O problema é que se passaram três meses, o texto evoluiu pouquíssimo e ele nem é grande coisa. Por isso pensei no seguinte: vou colocar as ideias dele aqui. Soltas mesmo. Algumas fazendo sentido entre si, outras que não encontraram muito onde ficar e umas que funcionam mais como imagem do que como argumento. Melhor hora pra testar se esse sufixo –zine dá espaço para uma bagunça mental de vez em quando.

  1. Se a gente atravessa a rua quando vê alguém “suspeito” vindo ao nosso encontro, tem como se considerar socialmente consciente? Dá para falar em preocupação ambiental se, para comermos menos carne, consumimos grãos plantados em terras desmatadas? Continua feminista o homem que não dá voz para suas colegas mulheres num ambiente marjoritariamente masculino?
  2. Se eu, homem, fico quieto ao presenciar um comentário machista, minha vida não muda em nada. Se eu, homem branco, não me incomodo quando alguém puxa a bolsa contra o próprio corpo ao cruzar com uma pessoa negra na rua, segue o baile. Na cartelinha de bingo dos privilégios, meus pontos só se acumulam – e os exemplos em que eu sou apenas um observador também. Privilégio é escolher os momentos em que você levanta suas bandeiras ideológicas.
  3. Esses dois primeiros trechos foram bem no comecinho, quando eu achava que o tema do texto seguiria mais no caminho de “é fácil levantar bandeira ideológica (com tecnologias) quando a gente pode escolher quando faz isso”. Foram duas variações que acabei descartando como introdução por achar meio pé no peito demais. Tentei ir por outro lado da mesma ideia e falar do privilégio como falta de percepção:

  4. A capacidade de não perceber talvez seja necessária para nossa sobrevivência. Se sentíssemos os micromovimentos da língua, das pálpebras piscando ou o ritmo da respiração, a vida seria um inferno. Se considerássemos o que estão pensando as pessoas que demoram para passar as compras no caixa e as que não te atendem direito num restaurante, não seria possível odiá-las sem culpa. Se não nomeássemos de coxinhas, petralhas, de classe C ou de usuários, teríamos mais dificuldade em afastar essas pessoas como “os outros”.
  5. Quando escrevo sobre tecnologias, preciso tomar cuidado com dois caminhos muito prováveis no texto. O primeiro é a pintura de uma distopia óbvia, já que o que mais existe no mundo da tecnologia são ideias que casam bem com um futuro do mal – inteligência artificial, machine learning e empregos automatizados, por exemplo. O segundo caminho possível é um discurso propagandista que nasce da crença de que novas tecnologias são a salvação de tudo – defender tudo o que o Elon Musk faz, basicamente. O meio do caminho, que desconfia de tudo, é mais difícil.
  6. Quando comecei a ouvir a expressão “economia compartilhada”, ela se referia a pessoas querendo dividir os custos de alguma coisa que as interessava porque não podiam bancar o valor total dessa alguma coisa ou não ligavam em dividir a posse dela com outras pessoas. Desse tipo de relação surgiram empresas como o Kickstarter, o Queremos! e o Patreon, que servem ainda hoje como detentoras das tecnologias que facilitam o encontro entre as pessoas interessadas. O termo, porém, se distorceu. Hoje ele é usado para descrever a relação duvidosa entre empresas como Airbnb e Uber e seus funcionários não registrados (anfitriões e motoristas, por exemplo). Ao se apropriarem do termo, só esqueceram de definir o que exatamente a “economia compartilhada” compartilha nesses casos.
  7. O discurso de “tecnologia por um mundo mais justo” casa muito bem com a visão de jovens como eu, cujo descontentamento com o capitalismo está muito mais na culpa burguesa de precisar ignorar um morador de rua pedindo ajuda do que na distribuição desigual de renda. Então, se pedindo um Uber ou alugando um quarto na Airbnb eu ainda posso sentir que ajudo gente-como-a-gente, melhor ainda para minha consciência.
  8. A Classe C, coxinhas, petralhas, usuários. São todos termos que contribuem para que a gente se afaste da ideia de que essas pessoas são gente como a gente. [Preciso da citação] Lembro de, num dos tantos documentários sobre a crise econômica de 2008, algum entrevistado ter dito que, quanto mais nos afastamos da ideia palpável daquele objeto (no caso, a comparação era o afastamento que acionistas têm da ideia de dinheiro quando estão lidando com ações da bolsa), a gente toma atitudes em relação a essa coisa com menos culpa.
  9. É moda agora falar de consumo consciente. O que a gente come e o que a gente veste já tem caído nessa peneira de “será que tou incentivando o maltrato de alguém por escolher esse aqui?”. Talvez falte a gente começar a questionar isso com tecnologia. Pensar em iphones produzidos na China e em Google monitorando os lugares pelos quais você passa já é mais normal em alguns círculos. Mas pensar se “será que alugar um quarto na Airbnb pode estar estimulando pessoas a despejarem outras pessoas porque alugar a curto prazo é mais lucrativo?”. Quando a tecnologia se torna invisível demais, a gente não vê o quanto ela é poderosa [também não lembro a citação, acho que é do Paul Ford].

E foi daí que não consegui sair. Nesse último parágrafo, o tom já é de fim de redação de escola. "Talvez falte a gente começar a questionar". Credo. Fora que: "começar a questionar". Dois verbos no infinitivo pra quê? Depois: "talvez (...) começar a". A prova da insegurança em emitir opinião no melhor estilo desculpa incomodar.

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Minhas referências principais, caso o tema te interesse:

  1. The Unexotic Underclass. É daqui a ideia de que gente da área de tecnologia só quer resolver Big Problems (fome na África) e não liga muito para as pessoas comuns (big problems).
  2. This is America in 2013: 40 years ago we put a man on the moon; today a young lady in New York can use anti-problem technology if she wishes to line up a date this Friday choosing only from men who are taller than 6 feet, graduated from an Ivy, live within 10 blocks of Gramercy, and play tennis left-handed...

    …And yet, veterans who’ve returned from Afghanistan and Iraq have to wait roughly 270 days (up to 600 in New York and California) to receive the help — medical, moral, financial – which they urgently need, to which they are honorably entitled, after having fought our battles overseas.
    It’s not rocket science: people build what they know. Cosmopolitan, well-educated young men and women in America’s big cities are rushing into startups and building for other cosmopolitan well-educated young men and women in big cities.
    The unexotic underclass are the poor in Eastern Europe, and Central Asia, who just don’t look foreign enough for our taste. (...) But if you were to go to Bulgaria to volunteer or to start a social enterprise, how would the folks back on Facebook know you were helping ‘the poor?’ if the poor in your pictures kind of looked like you?
  3. Agradeça ao Custo Brasil. Essa é a primeira parte de uma série que fala sobre o futuro em que novas tecnologias substituem nossos (?) empregos. E usa o Brasil como cenário, o que é raro de se ver. O ponto alto dele foi perceber como ainda gostamos de serviçais.
  4. Não só é cada vez mais comum ver “self-checkout” em vez de caixas nos supermercados [em países desenvolvidos], como o conceito de “empacotador” inexiste há décadas. Enquanto isso, por aqui há uma norma do Ministério do Trabalho que diz que é preciso ter pelo menos um empacotador a cada 3 caixas – em supermercados mais “chiques” daqui de São Paulo há um por caixa e alguns funcionários extras para ajudar a levar até o carro.
    “o brasileiro é exigentíssimo com o serviço, e por vezes exige do garçom uma atenção para assuntos que vão além de sua função: levar até a mesa, ser simpático à dúvida e indecisão, ser solícito à pressa e não apenas explicar os pratos, mas sugerir o melhor custo-benefício”. Muitos exigem que os garçons não apenas sirvam, mas sejam os servos temporários. Gente que reclama quando os garçons começam a levantar as cadeiras e lavar o lugar enquanto ainda estão jantando. “Nossa, vão expulsar a gente daqui!”, pensam os patrões brasileiros, ignorando o horário do funcionamento do transporte público.
    Quando jogarmos o lixo no lixo (separado), quando precisarmos assinar menos papéis, quando lavarmos a nossa própria louça, quando ficarmos honestos o suficiente para usarmos os caixas self-service, quando formos um país mais educado e eficiente, enfim, o que todo esse pessoal vai fazer? Por que não estamos pensando nisso? E se esses dados começam a alarmar você, como vamos começar a conversar sobre um possível desemprego em massa?
  5. Is The Gig Economy Working?. Rodou bastante pelos meus feeds então talvez você tenha visto. É um texto que olha para as pessoas que trabalham nas empresas da "economia compartilhada" e tenta pintar um panorama geral da relação entre os dois lados.
    Instead of scrubbing bathrooms at the Hilton, you can earn directly, how and when you want. Such thinking, though, presumes that gigging people and the old working and service classes are the same, and this does not appear to be the case. A few years ago, Juliet B. Schor, a sociology professor at Boston College, interviewed forty-three mostly young people who were earning money from Airbnb, Turo (like Airbnb for car rentals), and TaskRabbit. She found that they were disproportionately white-collar and highly educated
    A century ago, liberalism was a systems-building philosophy. Its revelation was that society, left alone, tended toward entropy and extremes, not because people were inherently awful but because they thought locally. You wanted a decent life for your family and the families that you knew. You did not—could not—make every personal choice with an eye to the fates of people in some unknown factory. But, even if individuals couldn’t deal with the big picture, early-twentieth-century liberals saw, a larger entity such as government could. This way of thinking brought us the New Deal and “Ask not what your country can do for you.” Its ultimate rejection brought us customized life paths, heroic entrepreneurship, and maybe even Instagram performance. We are now back to the politics of the particular.
    Jacob Hacker, a political-science professor at Yale, described a decades-long off-loading of risk from insurance-type structures—governments, corporations—to individuals. Economic insecurity has risen in the course of the past generation, even as American wealth climbed. Hacker attributed this shift to what he called “the personal-responsibility crusade,” which grew out of a post-sixties fixation on moral hazard: the idea that you do riskier things if you’re insulated from the consequences. The conservative version of the crusade is a commonplace: the poor should try harder next time. But, although Hacker doesn’t note it explicitly, there’s a liberal version, too, having to do with doffing corporate structures, eschewing inhibiting social norms, and refusing a career in plastics.
  6. Did Airbnb Kill the Mountain Town?. Ainda sobre economia compartilhada. Mas agora olhando só para empresas de aluguel provisório, como a Airbnb, e como elas afetam a dinâmica de cidades no interior dos EUA. Daqui veio o a ideia para o trecho ursinhos carinhosos, o último da lista.
  7. Some places, including Boulder and Denver, have passed tough regulations that permit only primary residents to rent out their properties for short periods. Other towns have taken the opposite tack, changing laws to allow previously illegal renting that was already on the rise
    Later, as I walked back to the place I had rented—via Airbnb—a few blocks away, I thought of a line I had seen on the site: “Live like a local.” But what happens when locals can’t afford to live like locals?
    After thinking about STRs [Short Term Rentals] for sev­eral days, it struck me that the whole deal, thorny and murky, seemed like the kind of quagmire that American political scientist Robert E. Horn has called a “social mess.” The STR issue meets any number of Horn’s criteria: “different views of the problem and contradictory solutions”; “numerous possible ­intervention points”; ­“consequences difficult to imagine”; and “no unique ‘correct’ view of the problem.”
  8. Como escrever bem. Mais um jabá. Esse me ajudou a desencanar desse não-texto que só empacou a newsletter – ou essa é a narrativa que criei para justificar minha desistência?
  9. Quando se vir em um impasse desses, observe bem o ponto problemático e pergunte: "Preciso mesmo disso?". Provavelmente a resposta será "não". A pecinha estava tentando fazer um trabalho desnecessário o tempo todo – e é por isso que ela o afligia tanto. Remova-a e veja como o trecho em questão volta a ganhar vida e a respirar normalmente. É a cura mais rápida e, muitas vezes, a melhor.

Escrevo sobre tecnologia, sociedade e qualquer interesse que eu tenha no momento. Também mando uns links interessantes para você nunca mais ficar sem assunto na fila do banco.